Um Judiciário político nas eleições em que a democracia é o que está em disputa
As eleições de 2018 são atípicas em diversos aspectos. Não faltam os analistas que acertadamente demonstram o dilema que pode nos levar ao cadafalso da escolha de um projeto político que aposta na implosão da democracia. Dito em termos literais: a proposta de quem defende que o poder deve ser entregue nas mãos de um grupo que atenda a padrões “aceitáveis” de comportamento, em relação aos quais a “minoria” incomodada ou que não atenda ao estipulado deve ser retirada das disputas sociais, da visibilidade e da participação política. Essa é a questão urgente que nos atravessa.
Há, contudo, outra discussão subjacente: nunca houve no país uma eleição tão marcada pela presença do Poder Judiciário. O irônico é que, sem a democracia, a Justiça vira adereço. Fato é que esses são pontos distintos que merecem a devida análise. Aqui nos focamos no segundo, ainda que entrelaçado no primeiro. É como diz a máxima que tanto se repetiu: ah, mas as instituições estão funcionando perfeitamente.
É exatamente pensando nas instituições que nos vem à mente o conceito clássico de “judicialização da política”[1], de Tate e Vallinder. Correlato ao de “politização da Justiça”, os autores colocam o termo focando nos efeitos da expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas. Contudo, saindo do universo acadêmico – na verdade, antecipando questões em relações às quais a academia deve se debruçar –, não parece que o debate usual sobre o tema dê conta do que o Brasil vive hoje, tendo o processo eleitoral como um marco que nem de longe esgota a questão. Os dilemas sobre a democracia brasileira explodem justamente quando a capacidade de resposta das instituições e mesmo as relações institucionais começaram a não responder à crise. Indo além, em uma espécie de arenga mútua, as instituições passaram a acentuá-la.
A força dos personagens
Tendo como recorte o Sistema de Justiça e o Sistema Político, são diversos os exemplos de que os limites até então estabelecidos se perderam. Na confusão em que estamos, até parece um dado perdido no tempo, mas há poucos meses se cogitava que um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) fosse candidato à Presidência da República. Já afastado do Judiciário, Barbosa tem todo o direito de se candidatar. Essa é, aliás, a possibilidade regular do jogo democrático: a disputa nas urnas. Porém, não me parece ter havido outro momento no país em que se cogitou a ideia de um magistrado para o Executivo federal e cujos incentivos ao voto advinham exatamente de sua figura como julgador implacável.
Nesse sentido, Joaquim Barbosa é, mais uma vez, personagem, uma metonímia, como uma parte que indica um todo, aqui pensando em um Judiciário cujo viés político parece ter ultrapassado o que estava na cartilha. Em 2016, no auge da crise do impeachment, o instituto de pesquisa Datafolha chegou a colocar o juiz Sérgio Moro num comparativo sobre intenção de votos para a eleição de 2018. Ele tinha seu nome no ranking junto com Lula, Marina, Ciro… Essa não foi a única simulação em que Moro – no caso, um magistrado – esteve como “candidato virtual” medindo aprovação com políticos profissionais. Mesmo que não seja da livre vontade de juiz se colocar dessa forma, é sintomático que haja condições para que os institutos de pesquisa o façam. É algo que enceta uma questão por vezes já abordada na coluna: o que fazer com um Judiciário ancorado na opinião pública?
De toda forma, Joaquim Barbosa e Sérgio Moro são, nesse caso, exemplos de uma personificação da Justiça que atravessa o Sistema Político ou o campo politico, como preferirem. Mas as inovações da “judicialização da política” não param aí. Se esse exemplo está na cota dos personagens, há ainda o fato de que outro personagem, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT-SP), até setembro, figurava como o favorito na disputa presidencial em todas as pesquisas. O detalhe é que Lula segue preso na carceragem da Polícia Federal, em Curitiba. A prisão do petista é um caso à parte e já abordamos alguns aspectos dessa peleja (colocar link: http://justificando.cartacapital.com.br/2018/07/19/indo-alem-do-caso-lula-porqueojogo-midiaticoefundamental/).
Fato é que todo esse imbróglio – incluindo a questão da espera pelo julgamento da tese da prisão após a condenação em 2a instância por parte do Supremo (até agora, o STF só julgou os habeas corpus específicos do ex-presidente, sem enfrentar as ações declaratórias que valem para análise da tese em si) e a posição Comitê Internacional de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) para que Lula fosse candidato à Presidência (após o registro, o Tribunal Superior Eleitoral -TSE indeferiu a candidatura de Lula, oficializando Haddad, inscrito até então como vice na chapa, como candidato oficial) – mostra mais uma vez que a participação da Justiça na atual conjuntura política não trata de casos corriqueiros. No caso Lula, a distinção entre a prisão, a possibilidade de se candidatar, dar entrevistas e tudo mais vale um estudo próprio, tamanha sua complexidade. Contudo, seu exemplo é indispensável em nosso argumento. Uma análise dos personagens é importante, mas ela não excluí a questão sistêmica sobre a escala da interferência da Justiça na política, na dissolução dos limites estabelecidos.
Limites ultrapassados
Há ainda as questões específicas da Justiça Eleitoral, em que se inserem pontos como os dos direitos políticos, levantados acima. Mas existe um mundo à parte: as decisões sobre a participação dos candidatos nas pesquisas, as hashtags proibidas, as imagens e vídeos que não podem ser veiculados no horário eleitoral gratuito… Todos esses pontos, além de dizerem respeito ao processo eleitoral especificamente, tiram a própria política, do ponto de vista institucional, do campo de atuação e, por vezes, colocam a Justiça em posição antagônica à vida real.
Há de se perguntar que efeito tem a proibição de um vídeo na televisão quando a campanha de 2018 é um ponto de inflexão a demonstrar o impacto indiscutível das redes sociais e da Internet. Para usar uma ilustração, digamos, analógica das impossibilidades: no pleito de 2014, o TSE proibiu a menção ao tema do “aeroporto de Cláudio” na propaganda eleitoral. No mesmo dia, era possível ver, na avenida Paulista, nas paredes dos prédios, imensas projeções com matérias sobre o aeroporto de Cláudio e o então candidato a presidente, senador Aécio Neves (PSDB-MG).
De todos os casos que envolvem os candidatos, nos exemplos que saem dos personagens, da questão sistêmica e entram na própria tutela do pleito – função típica da Justiça Eleitoral –, existe um ponto crucial em pauta: a necessidade veemente de o TSE se posicionar defendendo a lisura do processo eleitoral no que toca, sobretudo, embora não somente, à inviolabilidade das urnas eletrônicas. Quando falamos não somente é porque, por exemplo, ainda se tenta dimensionar os impactos do cancelamento de 3,368 milhões de títulos eleitorais por falta do recadastramento biométrico, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na última quarta-feira (26/09).
No que toca à inviolabilidade das urnas eletrônicas, essa necessidade agiganta-se quando o questionamento parte reiteradamente de um candidato em meio à disputa. Nesse sentido, voltamos ao início do texto e ao embate das eleições de 2018, em que a democracia é a grande pauta. Nesse recorte, em especial, o papel da Justiça Eleitoral, como árbitra, sai do que é atípico pela forma (retorna-se o debate sobre os limites da atuação) e atinge um dado conteúdo (o zelo pelas condições da disputa implica no zelo pela democracia). Ao se defender as regras, defende-se um resultado justo que não siga vontades específicas.
Um Judiciário político
Sim, dito tudo, não há como negar: o Judiciário é político. Isso é propriamente um segredo para a Ciência Política, em especial ao se olhar a literatura norte-americana sobre a Justiça: modelo atitudinal, modelo estratégico… Mas nós aqui, ressabiados ao olhar a “crise dos 30” da chamada Constituição Cidadã, ainda estamos nos acostumando não apenas ao período crítico, mas ao redesenho institucional e cotidiano que ele implica. A relação entre Justiça e política decerto será outra se e quando alguma estabilidade der sinal de vida. Até lá, entre personagens, sistema e processo eleitoral, mais do que uma divisão temática do que parece extrapolar as definições usuais, deve-se distinguir o que é decisão ad hoc do que afirmação institucional.
Não tenho dúvida de que em paralelo ao protagonismo do Judiciário virão as cobranças políticas. No meio dessa confusão, os elementos de descrédito do sistema político tradicional vão se juntando aos questionamentos sobre o funcionamento da própria Justiça e ao menosprezo à democracia. Se movimentos como #elenão mostram uma preocupação democrática nas ruas, à parte as preferências partidárias e ideológicas, em outro turno, aos atores institucionais, seja na Justiça ou na Política, cabe também entender os riscos. É tolo quem participa da institucionalidade e não percebeu que, ao minar as regras do jogo, os estilhaços atingem todos os lados.
Grazielle Albuquerque é jornalista e doutorandaemCiênciasPolíticaspelaUniversidadeEstadual de Campinas (Unicamp).Foi researchfellow no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburg. É pesquisadora da área de CiênciaPolítica, estudaSistema de Justiça, em especial, sua interface com a mídia.
Leia também:
[1]AndreiKoerner e Débora Maciel no artigo “Sentidos da judicialização da política: duas análises” (Revista Lua Nova, 2002) abordam a questão sob a ótica do debate brasileiro. Vale a leitura para aprofundamento do tema.
1 Comentário
Faça um comentário construtivo para esse documento.
Pode chorar, porque vai ganhar o 17 e sabe por que?
Porque petista é burro demais. Quer falar de democracia financiando, às custas do BNDES, Cuba, Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Angola, Moçambique, Guiné Equatorial, entre outros. Quer falar de democracia e direitos humanos vestindo camiseta de Che e Fidel (fuzilamientos sí! - ONU 1964). Quer falar do STF colocando ex-advogado do PT e reclamando do TRF-4, mas puxando-saco do militonto Favreto.
Quanto mais choram, mais se humilham. 13? Só se for o número a maior de vezes que os manifestantes pró-impeachment colocaram nas ruas. continuar lendo