Resumo do Informativo 913 do STF
Data de divulgação: 05 de setembro de 2018
Plenário
DIREITO PROCESSUAL PENAL – EMBARGOS INFRINGENTES
Embargos infringentes e dispensa irregular de licitação
O Plenário, por maioria, acolheu embargos infringentes interpostos em face de acórdão condenatório proferido pela Primeira Turma para absolver a embargante.
Em 2016, a Primeira Turma, por maioria de votos, julgou procedente a acusação e condenou parlamentar federal pela suposta prática do crime de dispensa irregular de licitação [Lei 8.666/1993, art. 89 (1)] e do crime de peculato [Código Penal (CP), art. 312 (2)], reconhecida a prescrição em relação ao último.
Nos embargos infringentes, a defesa sustentou, em preliminar: (a) a nulidade do feito em razão da litispendência e da usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para deliberar sobre o desmembramento da ação penal em relação aos demais investigados; e (b) a inépcia da denúncia, sob o argumento de que as condutas não teriam sido satisfatoriamente descritas, a impedir o exercício regular do direito de defesa.
Em relação ao mérito, a recorrente defende a inexigibilidade dos procedimentos licitatórios e a ausência de sobrepreço ou de prejuízo ao erário. Destaca, ainda, a existência de pareceres favoráveis à inexigibilidade das licitações emitidos pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE).
Inicialmente, o Tribunal, por maioria, rejeitou as preliminares suscitadas.
No tocante à suposta litispendência e à alegada usurpação de competência do STF, o Plenário registrou que a denúncia oferecida na presente ação penal versa sobre fatos distintos daqueles tratados em procedimento que tramita na primeira instância. Ademais, tal questão, bem como a arguida inépcia da denúncia, já foram objeto de expressa deliberação pela Turma, implementada a preclusão “pro iudicato”.
Quanto ao cabimento dos embargos infringentes, reiterou o que decidido na AP 863 no sentido de que esse recurso é cabível contra decisões proferidas em sede de ação penal de competência originária das Turmas quando proferidos dois votos minoritários de caráter absolutório em sentido próprio, o que se deu na espécie.
Vencido o ministro Marco Aurélio, que não conheceu dos embargos infringentes.
Acompanharam o relator, com ressalva de entendimento, os ministros Edson Fachin e Celso de Mello.
No mérito, afirmou que, para a responsabilização penal do administrador público com base no art. 89 da Lei de Licitações — norma penal em branco —, cumpre aferir se foram violados os pressupostos de dispensa ou inexigibilidade de licitação previstos nos artigos 24 e 25 do mesmo diploma legal, bem como se houve vontade livre e consciente de violar a competição e de produzir resultado lesivo ao patrimônio público.
Tal compreensão busca distinguir o administrador probo que, sem má-fé, agindo com culpa, aplica equivocadamente a norma de dispensa ou inexigibilidade de licitação, daquele que afasta a concorrência de forma deliberada, sabendo-a imperiosa, com finalidade ilícita.
No caso dos autos, examinados os elementos de convicção existentes, não restou demonstrado o dolo específico na conduta da embargante, no sentido de que teria agido com o intuito de beneficiar as empresas contratadas ou lesar o erário público.
Da análise dos procedimentos administrativos adotados, constatou-se que a seleção do material didático adquirido foi precedida da constituição de comissões compostas de equipe técnica especializada, que considerou algumas obras adequadas aos objetivos de determinado programa de governo.
Quanto à apontada utilização de fundamentação padronizada para justificar a escolha do material, é certo que o simples fato de os procedimentos licitatórios terem sido instruídos com pareceres técnicos nos quais constam termos e fundamentos semelhantes não consubstancia ilegalidade. Inexiste qualquer elemento concreto a indicar que o material didático comprado era inadequado para os fins a que se prestava.
Ademais, a escolha dos livros ideais para alcançar os objetivos do programa governamental em questão é matéria circunscrita ao mérito do ato administrativo. Desse modo, a seleção do melhor material didático escapa aos critérios estritamente objetivos sobre os quais o Poder Judiciário poderia exercer controle jurisdicional.
De outro lado, as cartas de exclusividade apresentadas pelas empresas contratadas mostram-se aptas a ensejar a inexigibilidade de licitação regulamentada pelo art. 25, I (3), da Lei 8.666/1993. A demonstração da exclusividade do representante comercial pode ter caráter local e dispensa registro em órgão específico, autorizada sua comprovação por meio de documentos emitidos por entidades idôneas, vinculadas ao setor de mercado respectivo, como é o caso da Câmara Brasileira do Livro.
Da mesma forma, a acusada, ao encaminhar o procedimento de inexigibilidade de licitação à PGE, pautou-se em ofícios assinados pelos coordenadores do programa, os quais garantiam não apenas a exclusividade da distribuição dos livros pelas contratadas, como a equivalência dos valores por elas praticados aos do mercado nacional. Eventual culpa por parte da embargante na conferência dos documentos apresentados não é capaz de conduzir ao enquadramento penal da conduta ao art. 89 da Lei 8.666/1993, que não admite a modalidade culposa para sua consumação.
Vencidos os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso e Marco Aurélio, que rejeitaram os embargos infringentes e mantiveram o entendimento firmado quando da prolação do acórdão recorrido (Informativos 836 e 837).
(1) Lei 8.666/1993: “Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.”
(2) CP: “Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.”
(3) Lei 8.666/1993: “Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: I - para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;”
AP 946/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 30.8.2018. (AP-946)
Primeira Turma
DIREITO PENAL – CUMPRIMENTO DE PENA
Princípio da insignificância e furto simples
A Primeira Turma, por maioria e de ofício, concedeu a ordem de “habeas corpus” para determinar a substituição da pena de condenado por crime de furto simples por medida restritiva de direito a serem fixadas pelo juízo de origem.
O paciente foi absolvido da prática do delito previsto no art. 155, “caput” (1), do Código Penal (CP)— furto simples —, combinado com o art. 14, II (2), CP — tentativa. Foi considerada a atipicidade material da conduta em razão do ínfimo valor da coisa subtraída — quatro frascos de xampu, no valor de R$ 31,20 — e a restituição dos bens à vítima.
Provida a apelação interposta pelo Ministério Público, o paciente foi condenado a oito meses de reclusão, em regime semiaberto, e ao pagamento de seis dias-multa. A defesa pleiteou a aplicação do princípio da insignificância, tendo em vista a inexpressividade da lesão e o pequeno valor da coisa, a demonstrar a atipicidade material.
Prevaleceu o voto médio proferido pelo ministro Alexandre de Moraes no sentido da inaplicabilidade do referido princípio. No entanto, concedeu a ordem de ofício, para que seja substituída a pena aplicada por medida restritiva de direito.
Registrou que, em pequenas comunidades, a substituição da pena privativa de liberdade por medida restritiva de direito, a permitir que as pessoas vejam onde está sendo cumprida, tem valor simbólico e pedagógico maior do que a fixação do regime semiaberto ou aberto.
Vencido o ministro Marco Aurélio, que denegou a ordem, por entender que não há ilegalidade na decisão do órgão revisor em substituir a absolvição pela pena de oito meses de reclusão em regime semiaberto.
Vencidos, também, o ministro Roberto Barroso e a ministra Rosa Weber, os quais concederam a ordem para reestabelecer a sentença absolutória de primeiro grau.
Vencido, em parte, o ministro Luiz Fux, que concedeu a ordem para fixar o regime aberto ao cumprimento de dois meses de pena.
(1) CP: “Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.”
(2) CP: “Art. 14. Diz-se o crime: (...) II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.”
HC 137217/MG, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ ac. Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 28.8.2018. (HC-137217)
DIREITO PENAL – EXCLUSÃO DO CRIME
Imunidade parlamentar e liberdade de expressão
A Primeira Turma iniciou julgamento de inquérito instaurado contra deputado federal, por suposta prática do delito tipificado no art. 20, “caput” (1), da Lei 7.716/1989, por duas vezes, na forma do art. 70 (2) do Código Penal (CP).
De acordo com a denúncia, o parlamentar, durante palestra, teria se manifestado, de modo negativo e discriminatório, sobre quilombolas, indígenas, refugiados, mulheres e LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros).
O ministro Marco Aurélio (relator) rejeitou a denúncia, no que foi acompanhado pelo ministro Luiz Fux.
O relator entendeu não configurado o conteúdo discriminatório das manifestações do acusado, as quais, além de se inserirem na liberdade de expressão prevista no art. 5º, IV (3), da Constituição Federal (CF), estão cobertas pela imunidade parlamentar, a que se refere o art. 53, da CF (4).
Observou, de início, que a narrativa contém a exposição de fato supostamente delitivo e das circunstâncias alusivas à prática. Foram individualizados os comportamentos imputados a título de ofensas dirigidas contra quilombolas e estrangeiros, estabelecendo-se vínculo de causalidade no tocante ao acusado, e especificadas as falas tidas como caracterizadoras do tipo penal.
Asseverou que, consoante se depreende do discurso proferido pelo acusado em relação a comunidades quilombolas, as afirmações, embora consubstanciem entendimento de diferenciação e até de superioridade, são desprovidas da finalidade de repressão, dominação, supressão ou eliminação, razão pela qual, tendo em vista não se investirem de caráter discriminatório, são incapazes de caracterizarem o crime previsto no art. 20, “caput”, da Lei 7.716/1989.
Considerou que os pronunciamentos do parlamentar contidos na peça acusatória estão vinculados ao contexto de demarcação e proveito econômico das terras e configuram manifestação política que não extrapola os limites da liberdade de expressão. Para o relator, não se pode confundir o interesse na extinção ou diminuição de reservas indígenas ou quilombolas com a supressão e eliminação dessas minorias. Ademais, o emprego, no discurso, do termo “arroba” não consiste em ato de desumanização dos quilombolas, no sentido de comparação a animais, mas forma de expressão – de toda infeliz –, evocada a fim de enfatizar estar um cidadão específico do grupo acima do peso considerado normal.
Quanto à incitação a comportamento xenofóbico, reputou insubsistentes as premissas apresentadas pela acusação. O delito é de perigo abstrato, cuja tipicidade há de ser materializada teleologicamente, ou seja, embora não se exija que do discurso dito incitador sobrevenha a efetiva prática de atos discriminatórios, é imprescindível a aptidão material do teor das falas a desencadeá-los.
No caso, as afirmações do denunciado se situam no âmbito da crítica à política de imigração adotada pelo Governo e não revelam conteúdo discriminatório ou passível de incitar pensamentos e condutas xenofóbicas pelo público ouvinte. O próprio acusado diz não fazer distinção quanto à origem estrangeira do imigrante. A crítica também se insere na liberdade de manifestação de pensamento, insuscetível, portanto, de configurar crime.
Observou, por fim, que o convite referente à palestra se deu em razão do exercício do cargo de deputado federal ocupado pelo acusado, a fim de proceder à exposição de visão geopolítica e econômica do País.
O relator reconheceu a vinculação das manifestações apresentadas na palestra com pronunciamentos do parlamentar na Câmara dos Deputados. Concluiu que, existente o nexo de causalidade entre o que veiculado e o mandato, tem-se a imunidade parlamentar. As declarações, ainda que dadas fora das dependências do Congresso Nacional e eventualmente sujeitas a censura moral, quando retratam o exercício do cargo eletivo, a atuação do congressista, estão cobertas pela imunidade parlamentar e implicam a exclusão da tipicidade.
Em divergência, o ministro Luís Roberto Barroso votou pelo parcial recebimento da denúncia, tendo sido acompanhado pela ministra Rosa Weber.
Considerou que, apesar de as manifestações do acusado em relação aos estrangeiros estar protegida pela liberdade de expressão e pela imunidade parlamentar, os pronunciamentos sobre quilombolas, afrodescendentes e sobre “gays” configuram, respectivamente, os delitos previstos no art. 20 da Lei 7.716/1989 e de incitação ao crime e apologia de crime, constantes dos artigos 286 e 287 (5) do CP.
Segundo o ministro Barroso, os termos “arrobas e procriador”, usados pelo parlamentar, se referem a animais irracionais, e que, portanto, a equiparação de pessoas negras a bichos é um elemento plausível para fins de recebimento da denúncia.
Em relação aos “gays”, destacou trechos das manifestações do acusado no sentido de que preferiria um filho morto a vê-lo com um outro homem e que, se visse dois homens se beijando na sua frente, os agrediria.
Asseverou estar-se diante de tipo de discurso de ódio que o direito constitucional brasileiro não admite, que é o ódio contra grupos minoritários, historicamente violentados e vulneráveis. Para o ministro, a proteção dos direitos fundamentais das minorias é um dos papéis mais importantes de um tribunal constitucional. Ninguém é melhor do que ninguém, somos todos iguais e devemos nos comportar com o mínimo de fraternidade, sem prejuízo da mais ampla liberdade de expressão.
Salientou que a homofobia mata, de acordo com dados estatísticos revelados sobre assassinatos contra integrantes de comunidades “gays”, e que, em razão disso, não devemos tratar com indiferença discursos de ódio, de agressão física em relação a pessoas que já sofrem outras dificuldades e outros constrangimentos na vida.
O modo como foram tratadas as pessoas negras, os quilombolas e as pessoas de orientação sexual “gay”, nas declarações do acusado, comporta o recebimento da denúncia e o prosseguimento do processo para que o dolo específico seja verificado, as testemunhas sejam ouvidas e a defesa produza provas.
Não receber a denúncia, neste caso, significa transmitir uma mensagem errada para a sociedade brasileira de que é possível tratar com menosprezo, desprezo, diminuição e menor dignidade as pessoas negras ou os homossexuais.
Em seguida, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos.
(1) Lei 7.716/1989: “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
CP: “Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.”
(2) CF: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV - e livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;”
(3) CF: “Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.”
(4) CP: “Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime (...) Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: (...)”
Inq 4694/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 28.8.2018. (Inq-4694)
Segunda Turma
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVAS
Acordo de leniência e compartilhamento de provas
A Segunda Turma negou provimento a agravo regimental para manter decisão que deferiu o compartilhamento de provas originalmente produzidas a partir de acordo de leniência, para a instrução de inquérito em trâmite no âmbito do Ministério Público estadual.
O compartilhamento visa promover a instrução de inquérito civil que investiga possível prática de ato de improbidade e lesão ao erário em razão do recebimento de valores destinados à campanha eleitoral de parlamentar federal.
A Turma afirmou que, no acordo de leniência em questão, o Ministério Público Federal (MPF) se compromete a não propor, contra os aderentes, qualquer ação de natureza cível ou penal em relação aos fatos e condutas nele revelados.
Todavia, não há óbice ao compartilhamento das provas, desde que o pedido se mostre adequadamente delimitado e justificado, na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) (Pet 6.845 e Pet 7.463), observadas cautelas especiais quando se tratar de colaboração premiada e acordo de leniência. Dessa forma, é legítimo o compartilhamento com o fim de instrução de inquérito que investiga pessoa a qual não celebrou acordo de leniência, desde que não acarrete eventual prejuízo aos aderentes do instrumento.
Inq 4420/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 21.8.2018 (Inq – 4420)
Transcrições
Com a finalidade de proporcionar aos leitores do Informativo STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.
Reclamação e concessão de “habeas corpus” de ofício
(Transcrições)
Reclamação 24.506/SP*
RELATOR: Ministro Dias Toffoli
Reclamação constitucional. Alegada usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal. Diligências investigativas levadas a cabo perante a autoridade reclamada que teriam apontado continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, inciso I) entre o reclamante e a autoridade investida de foro na Corte por prerrogativa da função. Circunstância que, por si só, não justifica o simultaneus processus perante a Suprema Corte, que determinou a cisão do feito e o prosseguimento das investigações em primeiro grau de jurisdição em relação àqueles não detentores de prerrogativa de foro. Precedentes. O desmembramento do feito em relação àqueles que não possuam prerrogativa de foro deve ser a regra, diante da sua manifesta excepcionalidade, ressalvadas as hipóteses em que a separação possa causar prejuízo relevante. Inteligência da jurisprudência do STF. Não houve demonstração de prejuízo relevante, em razão da cisão do feito, para a persecução penal ou para a defesa do reclamante. Inadequação do uso da reclamação para, sob a premissa de usurpação de competência, veicular insurgência contra a cisão das investigações pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Precedentes. Existência de fato novo que endossaria a tese de usurpação de competência, a justificar a reunião dos processos na Corte. Circunstâncias supervenientes que se imiscuem com o objeto de apuração no INQ nº 4.325/DF, de relatoria do eminente Ministro Edson Fachin. Impossibilidade de se emitir juízo de valor no tocante a essa nova moldura fático-jurídica apresentada, sob pena de se incorrer em substituição ao relator do inquérito, juiz natural da causa (CF, art. 5º, LIII). Improcedência da reclamação e a consequente prejudicialidade do agravo regimental do Parquet. Presença de flagrante constrangimento ilegal passível de correção por habeas corpus de ofício. Possibilidade em sede de reclamação constitucional. Inteligência do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal. Precedentes. Prisão preventiva. Artigo 312 do Código de Processo Penal. Ausência de motivação idônea. Constrição assentada na garantia da ordem pública. Aventado risco para a instrução criminal e para a aplicação da lei penal. Insubsistência Ausência de contemporaneidade do decreto prisional nesse aspecto. Invocada gravidade em abstrato das condutas. Inadmissibilidade. Precedentes. Habeas corpus concedido de ofício para ratificar a decisão cautelar revogadora da prisão preventiva do reclamante, a qual foi estendida a outros investigados devidamente especificados (CPP. Art. 580).
1. Por atribuição constitucional, presta-se a reclamação para preservar a competência do Supremo Tribunal Federal e garantir a autoridade de suas decisões (CF, art. 102, inciso I, alínea 1), bem como para resguardar a correta aplicação das súmulas vinculantes (CF, art. 103A, § 3º).
2. Usurpação de competência fundamentada na tese de que as diligências investigativas levadas a cabo perante a autoridade reclamada pela autoridade policial e pelo Parquet Federal teriam apontado continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, inciso I) entre o reclamante e a Senadora Gleisi Hoffmann, o que justificaria a reunião do caso no INQ nº 4.130/DF.
3. A configuração de usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal para supervisionar investigações criminais tem como consequência inexorável a nulidade dos atos eventualmente praticados na persecução penal, o que não é a hipótese dos autos.
4. A apontada continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, I), por si só, não justifica o simultaneus processus perante a Suprema Corte, que já havia determinado a cisão do feito e o prosseguimento das investigações, quanto a não detentores de prerrogativa de foro, em primeiro grau de jurisdição, ora sob a supervisão da autoridade reclamada.
5. Os fatos imputados ao ora reclamante, além de muito mais extensos do que aqueles imputados à Senadora, são dotados de autonomia probatória.
6. Os documentos alusivos ao prosseguimento das investigações perante a autoridade reclamada não indicam novas condutas criminosas imputáveis à Senadora da República que pudessem justificar a remessa do feito ao Supremo Tribunal Federal. Tampouco a Senadora seria alvo de investigação naquela instância, o que, inegavelmente, configuraria a invocada usurpação de competência da Corte.
7. Não houve demonstração de prejuízo relevante, em razão da cisão do feito, para a persecução penal ou para a defesa do reclamante.
8. A interativa jurisprudência da Corte consigna que o desmembramento do feito em relação a imputados que não possuam prerrogativa de foro, "deve ser a regra, diante da manifesta excepcionalidade do foro por prerrogativa de função, ressalvadas as hipóteses em que a separação possa causar prejuízo relevante” (Inq nº 2.903/AC-AgR, Pleno, Relator o Ministro Teori Zavaschi, DJe de 1º/7/14).
9. Na linha de precedentes, a reclamação não é a via adequada para, sob a premissa de usurpação de competência, veicular insurgência contra a cisão das investigações pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
10. A assunção de fato superveniente que corrobora a tese de usurpação de competência da Corte imiscui-se com o objeto de apuração no INQ nº 4.325/DF, sob a relatoria do eminente Ministro Edson Fachin.
11. Impossibilidade de se emitir juízo de valor no tocante a essa nova moldura fático-jurídica apresentada para se concluir, como pretendido, pela usurpação de competência da Corte, sob pena de se incorrer em substituição ao próprio relator do inquérito em questão, juiz natural da causa (CF, art. 5º, LIII), que, oportunamente, analisará a questão sob o ângulo apontado, em campo próprio e propício para tanto.
12. Improcedência da reclamação e, por consequência, prejudicado o agravo regimental da PGR.
13. Flagrante constrangimento ilegal, que decorre da decretação da prisão preventiva do reclamante, passível de correção por habeas corpus de ofício.
14. Na dicção do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal, os juízes e os tribunais têm competência para expedir, de ofício, ordem de habeas corpus quando, no curso de processo, verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.
15. O Supremo Tribunal Federal não se distancia dessa premissa teórica, já que admite, em sede de reclamação constitucional, a implementação de ordem de habeas corpus de ofício no intuito de reparar situações de flagrante ilegalidade devidamente demonstradas. Precedentes.
16. O juízo de primeiro grau justificou a necessidade da prisão preventiva para a garantia da ordem pública no fato de não ter sido localizada" expressiva quantia em dinheiro desviada dos cofres públicos ", o que representaria" risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira, a qual certamente é agravada pelos desvios decorrentes de cumulados casos de corrupção ".
17. Esse fato, isoladamente considerado, não constitui fundamento idôneo para a decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem pública, haja vista que se relaciona ao juízo de reprovabilidade da conduta, próprio do mérito da ação penal.
18. A prisão preventiva não pode ser utilizada como instrumento para compelir o imputado a restituir valores ilicitamente auferidos ou a reparar o dano, o que deve ser objeto de outras medidas cautelares de natureza real, como o sequestro ou arresto de bens e valores que constituam produto do crime ou proveito auferido com sua prática.
19. A prisão preventiva para a garantia da ordem pública seria cabível, em tese, caso houvesse demonstração de que o reclamante estaria transferindo recursos para o exterior, conduta que implicaria a existência de risco concreto da prática de novos crimes de lavagem de ativos. Disso, todavia, não há notícia.
20. Não foram apontados elementos concretos de que o reclamante, em liberdade, ora continuará a delinquir, não sendo admissível, ademais, se cogitar da gravidade em abstrato dos crimes imputados ao reclamante e a necessidade de se acautelar a credibilidade da Justiça.
21. A necessidade da custódia para a aplicação da lei penal visa tutelar, essencialmente, o perigo de fuga do imputado, que, com seu comportamento, frustraria a provável execução da pena, sendo certo, ademais, que a não localização do produto do crime não guarda correlação lógica com o perigo de fuga do imputado.
22. A decisão do juízo de primeiro grau a respeito da necessidade da prisão para garantia da investigação ou da instrução criminal se lastreou, de modo frágil, na mera conjectura de que o reclamante, em razão de sua condição de ex-ministro e de sua ligação com outros investigados e com a empresa envolvida nas supostas fraudes, poderia interferir na produção da prova, mas não indica um único elemento fático concreto que pudesse amparar essa ilação.
23. A decisão da autoridade judiciária lastreou-se em argumentos frágeis, pois, ainda que amparada em elementos concretos de materialidade, os fatos que deram ensejo a custódia estão longe de ser contemporâneos do decreto prisional.
24. É do entendimento da Corte que,"ainda que graves, fatos antigos não autorizam a prisão preventiva, sob pena de esvaziamento da presunção de não culpabilidade (art. 5º, inciso LVII, da CF)” (HC nº 147.192/RJ, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe de 23/2/18.
25. Habeas corpus concedido de ofício para ratificar a decisão revogadora da prisão preventiva do reclamante nos exatos termos em que proferida, a qual foi estendida a outros investigados especificados, na forma do art. 580 do CPP.
VOTO
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (RELATOR):
Conforme relatado, trata-se de reclamação ajuizada por Paulo Bernardo Silva, ao fundamento de que o Juiz Federal da 6ª Vara Criminal Especializada em Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Valores da Seção Judiciária de São Paulo teria usurpado a competência do Supremo Tribunal Federal.
Pois bem, anoto que, por atribuição constitucional, presta-se a reclamação para preservar a competência do Supremo Tribunal Federal e garantir a autoridade de suas decisões (CF, art. 102, inciso I, alínea l), bem como para resguardar a correta aplicação das súmulas vinculantes (CF, art. 103-A, § 3º).
A reclamatória, neste aspecto, exsurge como instrumento de promoção do diálogo, nesta Suprema Corte, entre o caso concreto e os precedentes em processos objetivo ou subjetivo, cuja admissibilidade está condicionada à efetiva demonstração de: a) desrespeito à autoridade da decisão do STF, porquanto configurada erronia na aplicação do entendimento, a evidenciar teratologia da decisão reclamada; e b) usurpação da competência do STF, pois existente, i) no caso concreto, peculiaridades que impossibilitam a aplicação adequada da norma de interpretação extraída do precedente (distinguishing), a demandar pronunciamento desta Suprema Corte acerca da matéria constitucional no caso concreto, caso verificada repercussão geral, ou, ii) em hipótese excepcionalíssima, a necessidade de revisitação dos fundamentos do precedente, tendo em vista a alteração do ordenamento jurídico vigente ao tempo do julgamento ou das circunstâncias fáticas históricas que impactaram a interpretação da norma, com possibilidade de sua superação (overruling).
Fixadas essas premissas, registro que a alegação de usurpação de competência fundamenta-se na tese de que as diligências investigativas levadas a cabo perante a autoridade reclamada pela autoridade policial e pelo Parquet Federal teriam apontado continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, inciso I) entre o reclamante e a Senadora Gleisi Hoffmann, o que justificaria a reunião do caso no INQ nº 4.130/DF.
De fato, na hipótese de usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal para supervisionar investigações criminais, a consequência inexorável é a nulidade dos atos eventualmente praticados na persecução penal.
No julgamento da Rcl nº 12.484/DF, Primeira Turma, de minha relatoria, DJe de 29/9/14, assentei que
“(..) a polícia judiciária não está autorizada a instaurar, de ofício, inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais. Representando esse entendimento, destaco como paradigma, a PET nº 3.825/MT-QO, Relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes. Naquele emblemático julgado, o Plenário da Corte assentou, mutatis mutandis, que:
‘10. A Polícia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República (no caso do STF). No exercício de competência penal originária do STF (CF, art. 102, I, ‘b’ c/c Lei nº 8.038/1990, art. 2º e RI/STF, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis. 11. Segunda Questão de Ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado’ (DJ de 4/4/08).
Embora não desconheça o magistério jurisprudencial da Corte de que os vícios eventualmente ocorridos no inquérito policial não têm o condão de macular a ação penal (HC nº 83.921/RJ, Primeira Turma, Relator o Ministro Eros Grau, DJe de 27/8/04), tenho que os elementos colhidos nos inquéritos policiais em comento não podem servir de substrato probatório válido para embasar a condenação dos reclamantes, pois as provas ilícitas obtidas de forma direta ou por derivação de outras (fruits of the poisonous tree), independentemente do momento em que foram produzidas, são nulas”.
Por sua vez, no Inq nº 2.842/DF, Pleno, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 27/2/14, registrou-se que
“(...) a competência do Supremo Tribunal Federal, quando da possibilidade de envolvimento de parlamentar em ilícito penal, alcança a fase de investigação, materializada pelo desenvolvimento do inquérito. Nessa linha, destaco:
‘Reclamação. 2. Competência. Parlamentar. Deputado Federal. 3. Inquérito policial instaurado, após requisição encaminhada pelo Juízo da 23ª Zona Eleitoral de Barbacena, para apurar a suposta prática do crime previsto no art. 299 do Código Eleitoral. 4. CF, art. 102, I, ‘b’. Competência do Supremo Tribunal Federal. 5. Reclamação julgada procedente, a fim de que a investigação contra o reclamante tramite nesta Corte’ (Pleno, Rcl 10.908/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, grifei).
‘COMPETÊNCIA - TRAMITAÇÃO DE INQUÉRITO - ENVOLVIMENTO DE DEPUTADO FEDERAL. Uma vez envolvido deputado federal, cumpre ao Supremo os atos próprios ao inquérito’ (Pleno, INQ 2.291, Rel. Min. Marco Aurélio).
‘COMPETÊNCIA CRIMINAL. Originária.
Parlamentar. Deputado federal. Inquérito policial. Crime eleitoral. Crime comum para efeito de competência penal original do Supremo. Feito da competência deste. Reclamação julgada procedente. Precedentes. Inteligência do art. 102, I, ‘b’, da CF. Compete ao Supremo Tribunal Federal supervisionar inquérito policial em que deputado federal é suspeito da prática de crime eleitoral’ (Pleno, Rcl 4.830/MG, Rel. Min. Cezar Peluso, grifei).
Por outro lado, ainda que os elementos de prova produzidos sob a supervisão do Juízo Federal de Santa Maria RS possam ter amparado a deflagração da ação penal contra os demais acusados, a usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal traz como consequência a inviabilidade de tais elementos operarem sobre a esfera penal do ora denunciado. Cito precedentes da Corte nesse sentido:
‘A Polícia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República (no caso do STF). No exercício de competência penal originária do STF (CF, art. 102, I, b c/c Lei nº 8.038/1990, art. 2º e RI/STF, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis. 11. Segunda Questão de Ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado. 12. Remessa ao Juízo da 2ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Mato Grosso para a regular tramitação do feito.’ (Pleno, Pet 3.825-QO/MT, Rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes).
‘A garantia da imunidade parlamentar em sentido formal não impede a instauração de inquérito policial contra membro do Poder Legislativo, que está sujeito, em consequência – e independentemente de qualquer licença congressional –, aos atos de investigação criminal promovidos pela Polícia Judiciária, desde que essas medidas pré-processuais de persecução penal sejam adotadas no âmbito de procedimento investigatório em curso perante órgão judiciário competente: o STF, no caso de os investigados serem congressistas (CF, art. 102, I, b)’. (Rcl 511-9/PB, Rel. Min. Celso de Mello).
Por conseguinte, penso não haver outro caminho senão reconhecer a impossibilidade da utilização dos elementos probatórios constantes do presente inquérito como fundamento para o recebimento da denúncia.
Evidentemente, essa conclusão não alcança os demais acusados que não possuem foro por prerrogativa de função.
Portanto, com fulcro nas considerações acima, em meu juízo, encontrando-se a denúncia esvaziada de provas ou indícios de materialidade válidos, voto no sentido de rejeitá-la” (grifei).
No mesmo sentido, vide AP nº 933/AL, Segunda Turma, de minha relatoria, DJe de 3/2/16.
Essa, contudo, não é a hipótese dos autos.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inq nº 4.130/DF-QO, de minha relatoria, DJe de 3/2/16, determinou a cisão do feito em relação a todos os investigados não detentores da prerrogativa de foro, e não somente em relação ao investigado Alexandre Romano, como pretende fazer crer a defesa.
Transcrevo, na parte que interessa, o voto condutor desse acórdão:
“Na espécie, não se vislumbra a possibilidade de ocorrer relevante prejuízo para a investigação criminal que justifique o simultaneus processus, razão por que se impõe o desmembramento do feito em relação a todos os investigados que não detêm prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, a fim de que a investigação prossiga, perante a Suprema Corte, tão somente em relação à Senadora da República Gleisi Helena Hoffmann.
Mais: além de não haver prejuízo relevante para a instrução, a própria heterogeneidade do estágio das investigações recomenda a cisão.
Com efeito, o investigado Alexandre Romano, que não tem prerrogativa de foro nesta Corte, está preso preventivamente desde 15/8/15, por ordem do juízo de primeiro grau, e já foi denunciado por infração ao art. 2º, § 1º, da Lei nº 12.850/13, ao passo que a investigação ainda se encontra embrionária em relação à Senadora da República.
Por óbvio, não compete ao Supremo Tribunal Federal formular juízo de admissibilidade de denúncia formulada isoladamente contra imputado que não detém prerrogativa de foro” (grifos nossos).
Assim, a apontada continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, I), por si só, não justifica o simultaneus processus perante a Suprema Corte, que, como exposto, já determinou a cisão do feito e o prosseguimento das investigações quanto a não detentores de prerrogativa de foro, em primeiro grau de jurisdição, ora sob a supervisão da autoridade reclamada.
Conforme já decidi no Inq nº 3.842/DF-AgR-quinto, de minha relatoria,
“a imbricação de condutas, em razão de conexão ou continência (arts. 76 e 77, CPP), com fatos imputados a Senador da República não é suficiente para atrair os agravantes à Suprema Corte, haja vista que as normas constitucionais sobre prerrogativa de foro devem ser interpretadas restritivamente” (Segunda Turma, DJe de 29/2/16).
Aliás, os fatos imputados ao ora reclamante, além de muito mais extensos do que aqueles imputados à Senadora, são dotados de autonomia probatória.
Por sua vez, os documentos alusivos ao prosseguimento das investigações perante a autoridade reclamada não indicam novas condutas criminosas imputáveis à Senadora da República que pudessem justificar a remessa do feito ao Supremo Tribunal Federal.
Tampouco a Senadora seria alvo de investigação naquela instância, o que, inegavelmente, configuraria a invocada usurpação de competência da Corte.
Corroborando essa assertiva, a autoridade policial fez questão de explicitar, na representação, encaminhada à autoridade reclamada, visando à decretação de prisões preventivas, buscas e apreensões e conduções coercitivas, que as condutas imputadas à Senadora eram objeto do INQ nº 4.130/DF.
Consignou, ainda, que eventuais citações ou menções ao nome da Senadora somente apareceriam em excertos de elementos de prova indispensáveis à compreensão da conduta de outros investigados, o que, mais uma vez, não se equipara a indevida investigação de detentor de prerrogativa de foro.
Por outro lado, o acolhimento da pretensão do reclamante poderia implicar na atração para a Suprema Corte, por conta de conexão ou continência, de todos os demais investigados sem prerrogativa de foro.
Agregue-se a esse fundamento o fato de que o reclamante não logrou êxito em demonstrar a potencialidade de prejuízo relevante, em razão da cisão do feito, para a persecução penal ou para sua defesa.
Como se lê na jurisprudência da Corte, o desmembramento do feito em relação a imputados que não possuam prerrogativa de foro “deve ser a regra, diante da manifesta excepcionalidade do foro por prerrogativa de função, ressalvadas as hipóteses em que a separação possa causar prejuízo relevante” (Inq nº 2.903/AC-AgR, Pleno, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 1º/7/14 – grifei), o que já se demonstrou não ser o caso.
Registre-se, ainda, que a reclamação não é a via adequada para, sob a premissa de usurpação de competência, veicular insurgência contra a cisão das investigações pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Confira-se:
“A atuação do juízo reclamado deu-se com base em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 19.12.2014, nos autos de Pet 5.245, que, acolhendo manifestação do Procurador-Geral da República, dominus litis, deferiu ‘os requerimentos de cisão processual, mantendo-se no Supremo Tribunal Federal aqueles termos em que figurem detentores de prerrogativa de foro correspondente (item VII, h), com remessa dos demais aos juízos e tribunais indicados”. 2. Eventual encontro de indícios de envolvimento de autoridade detentora de foro privilegiado durante atos instrutórios subsequentes, por si só, não resulta em violação de competência desta Suprema Corte, ainda mais quando houver prévio desmembramento pelo Supremo Tribunal Federal, como ocorreu no caso. 3. Não demonstração de persecução, pelo juízo reclamado, da prática de atos violadores da competência do Supremo Tribunal Federal” (Rcl nº 21.419-AgR/PR, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 5/11/15).
Diante dessas circunstâncias, não vislumbro situação de violação da competência prevista no art. 102, inciso I, alínea l, da Constituição Federal, à luz do que ficou decidido no INQ nº 4.130-QO.
Há que se enfrentar, ademais, a manifestação superveniente do reclamante noticiando que,
“no dia 5 de setembro de 2017, a Procuradoria Geral da República ofereceu denúncia nos autos do IPL 4325 em face do Reclamante PAULO BERNARDO SILVA, da Senadora GLEISI HOFFMANN, e de outros investigados, pela prática, entre outros crimes, de formação de organização criminosa, sustentando que os fatos objeto da presente reclamação integrariam aquela imputação” (Petição/STF nº 52.549/17).
Segundo a defesa, foi expressamente consignado na exordial do Parquet Federal a assertiva de que haveria “continência” entre os fatos em apuração no INQ nº 4.325/DF e a ação penal à qual responde o reclamante na Justiça Federal de São Paulo (processo nº 000946281.2016.4.03.6181). Vide:
“4. Da continência com outros processos e da competência do Supremo Tribunal Federal
A denúncia ora oferecida apresenta continência com outras ações penais já em trâmite na primeira instância.
Primeiro, há continência em relação à ação penal nº 0009462-81.2016.4.03.6181, que tramita perante o Juízo da 6ª Vara Criminal Justiça Federal de São Paulo, em face dos aqui denunciados PAULO BERNARDO SILVA e JOÃO VACCARI NETO, bem como de outros. Na referida ação, a PAULO BERNARDO e VACCARI foi imputado o crime de participação por organização criminosa em razão dos ilícitos relacionados ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), no período entre 2009 e 2015. Trata-se, justamente, da mesma organização criminosa imputada na presente denúncia” (anexo 102).
Para a defesa, esses fatos reforçam a tese de usurpação de competência da Corte, por conta, a seu ver, da evidente “continência” dos fatos atribuídos ao ora reclamante e a autoridade detentora de foro por prerrogativa da função no Supremo Tribunal Federal.
Malgrado os pertinentes argumentos trazidos pela defesa para alavancar a tese consubstanciada nesta reclamação, o fato é que a apontada continência relativa à ação penal do reclamante imiscui-se com fatos supervenientes, em contexto de organização criminosa, os quais são objeto de apuração no INQ nº 4.325/DF, sob a relatoria do eminente Ministro Edson Fachin.
Portanto, não me parece pertinente, neste ensejo, emitir juízo de valor no tocante a essa nova moldura fático-jurídica apresentada, para se concluir, como pretendido, pela usurpação de competência da Corte. Do contrário, estaríamos incorrendo em substituição ao próprio Relator do inquérito em questão, juiz natural da causa (CF, art. 5º, LIII), que, oportunamente, analisará a questão sob o ângulo apontado, em campo próprio e propício para tanto.
Aliás, informações encaminhadas ao Ministro Edson Fachin, contidas no bojo do INQ nº 4.325/DF, em 16/5/18, atestam que a autoridade reclamada suspendeu, em relação ao reclamante, o andamento da ação penal - objeto de discussão nesta ação - por 90 (noventa) dias, com o propósito de aguardar a decisão da Corte sobre eventual reunião dos processos.
Ante o exposto, a improcedência desta reclamação é medida que se impõe.
Entretanto, tal como reconheci ao apreciar a medida liminar, houve, na espécie, flagrante constrangimento ilegal, passível de correção por habeas corpus de ofício.
Como exposto, narra a inicial que o reclamante se encontra preso preventivamente desde 23/6/16, sem motivação idônea, cuidando-se de verdadeira antecipação de futura punição.
Nos termos do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal, os juízes e os tribunais têm competência para expedir, de ofício, ordem de habeas corpus quando, no curso de processo, verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.
Para Guilherme de Souza Nucci,
“é admissível que, tomando conhecimento da existência de uma coação à liberdade de ir e vir de alguém, o juiz ou o tribunal determine a expedição de ordem de ‘habeas corpus' de ofício em favor do coato. Trata-se de providência harmoniosa com o princípio da indisponibilidade da liberdade, sendo dever do magistrado zelar pela sua manutenção” (Código de Processo Penal comentado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 1322, grifo).
O Supremo Tribunal Federal não se distancia dessa premissa teórica, já que admite, em sede de reclamação constitucional, a implementação de ordem de habeas corpus de ofício no intuito de reparar situações de flagrante ilegalidade devidamente demonstradas.
Cito precedentes:
“Reclamação. 2. Alegação de descumprimento da decisão proferida no HC 81769. 3. Pena. Dupla valoração. Internacionalidade do delito considerado no cálculo da pena base e como causa especial de aumento. 4. Correção levada a efeito pelo juiz sentenciante, que excluiu da fundamentação da pena base a internacionalidade, contudo, manteve o mesmo quantum. 5. Reclamação improcedente. 6. Concessão de habeas corpus de ofício para que se proceda à nova dosimetria da pena-base, ante a impossibilidade desta ser igual à inicialmente glosada” (Rcl nº 2.636/RJ, Pleno, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 10/2/06).
No mesmo sentido, destaco: Rcl nº 21.649/SP-AgR, Segunda Turma, de minha relatoria DJe de 18/3/16; Rcl nº 1.047/AM-QO, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Sidney Sanches, DJ de 18/2/2000; e Rcl nº 412/SP, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Octavio Gallotti, DJ de 26/2/93.
Fixado esse entendimento, passo à análise dos fundamentos da decretação da prisão preventiva do reclamante, que, a meu ver, encerra situação de manifesto constrangimento ilegal.
O juízo de primeiro grau assim justificou a presença do periculum libertatis no tocante ao ora reclamante:
“Cumpre, agora, analisar a presença dos requisitos que ensejam a prisão cautelar.
Polícia e Ministério Público Federal sustentam basicamente risco à instrução criminal e à aplicação da lei penal.
Conforme acima fundamentado, os indícios da materialidade delitiva apontam prejuízo superior a sete milhões de reais, dinheiro que seria, em tese, fruto de corrupção passiva (propina) mediante a tentativa de dissimulação pelas notas fiscais referentes a supostos honorários advocatícios devidos pela CONSIST, o que, num primeiro momento, foi negado por PABLO KIPERSMIT, do grupo CONSIST (lavagem de valores).
A gravidade, em tese, do crime é evidente, porém a gravidade, por si só, não preenche os requisitos cautelares para a prisão preventiva.
Assim, deve-se analisar o caso concreto. Na presente situação, tem-se que PAULO BERNARDO é um agente político obviamente influente, tanto que ocupou um Ministério de grande relevância como o do Planejamento.
Existe o risco à instrução criminal, não só por conta da condição política de PAULO BERNARDO. O risco concreto existe devido aos indícios da relação espúria com GUILHERME GONÇALVES e o referido FUNDO CONSIST. Nota-se, assim, desde o início o intuito de dissimulação que certamente não desaparece pelo fato de PAULO BERNARDO ser um ex-ministro. Há, portanto, um risco concreto de novas manipulações nas provas, tanto documentais como testemunhais, tanto em relação a PAULO BERNARDO quanto em relação a GUILHERME GONÇALVES.
Existe, ainda, o risco à aplicação da lei penal, eis que teriam sido desviados sete milhões de reais (os pagamentos da
CONSIST para GUILHERME GONÇALVES, que seria intermediário de PAULO BERNARDO) e tal quantia ainda não foi devidamente localizada. O risco de realização de novos esquemas de lavagem desses valores não localizados é expressivo.
A não localização de expressiva quantia em dinheiro desviada dos cofres públicos representa, inclusive, risco à ordem pública, e aqui não se trata apenas do clamor público da sociedade evidentemente cansada da corrupção. Trata-se, sim, do risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira, a qual certamente é agravada pelos desvios decorrentes de cumulados casos de corrupção.
Vale lembrar, outrossim, que não existe apenas risco à ordem pública, quando o acusado se mostra perigoso para a sociedade num sentido violento. Tal interpretação fatalmente relegaria a prisão preventiva apenas para investigados ou acusados pobres. A corrupção de quantias expressivas também representa um perigo invisível para a sociedade, que acaba se tornando vítima sem o saber, pois não vê que o dinheiro público desviado deveria ser aplicado em seu próprio favor, por meio da melhoria da infraestrutura e serviços públicos em geral do País.
Por tais razões, entendo presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva de PAULO BERNARDO SILVA e de GUILHERME DE SALLES GONÇALVES, para garantia da ordem pública, da instrução criminal, e da aplicação da lei penal, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.
Os riscos apontados, especialmente os relacionados ao desvio de milhões de reais dos cofres públicos que podem não ser recuperados, e os relacionados à instrução criminal, não são passíveis de serem obstados por medidas cautelares mais brandas, nos termos do art. 319 do Código de Processo Penal.
Lembro que a decretação de prisão preventiva não significa antecipação de juízo de culpabilidade. Ela é decorrente de uma combinação de indícios suficientes de materialidade e autoria delitiva e da presença dos requisitos cautelares, acima expostos.
O juízo de culpabilidade, ao menos na primeira instância, só é formado após o encerramento da instrução criminal e os requisitos da prisão preventiva são, em tese, analisados a qualquer tempo do processo, iniciando-se pela audiência de custódia, prevista na Resolução do Conselho Nacional de Justiça, que será devidamente designada. ”
Como se observa, o juízo de primeiro grau justificou a necessidade da prisão preventiva para a garantia da ordem pública no fato de não ter sido localizada “expressiva quantia em dinheiro desviada dos cofres públicos”, o que representaria “risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira, a qual certamente é agravada pelos desvios decorrentes de cumulados casos de corrupção”.
De acordo com Rodrigo Capez, em sua festejada obra Prisão e medidas cautelares diversas,
“[p]rimeiramente, há que se restringir o alcance da expressão ‘ordem pública’. Embora se trate de um conceito jurídico indeterminado, a indeterminação do enunciado, como já tivemos oportunidade de expor neste trabalho, não se traduz em indeterminação de aplicação, a qual só permite uma ‘unidade de solução justa’ em cada caso, à qual se chega mediante uma atividade de cognição, objetivável, e não por um ato de volição.
Segundo Eduardo García de Enterría, identificam-se, na estrutura de todo conceito jurídico indeterminado, i) um núcleo fixo ou zona de certeza, configurado por dados prévios e seguros; ii) uma zona intermediária ou de incerteza, ou ‘halo do conceito’, mais ou menos precisa; e, finalmente, iii) uma zona de ‘certeza negativa’, também segura quanto à exclusão do conceito. A dificuldade de se precisar a solução justa se concreta na zona de imprecisão ou ‘halo conceitual’, mas desaparece nas zonas de certeza, positiva ou negativa.
Quanto à zona de certeza negativa do conceito de ordem pública, é pacífico, no Supremo Tribunal Federal, que o estado de comoção social, a indignação popular, o clamor público suscitado pela prática do crime, assim como a necessidade de se acautelar o meio social e a credibilidade da justiça em razão da repercussão do crime, constituem fundamentos inidôneos, por si sós, para a prisão cautelar.
(...)
Na zona de certeza positiva, inclui-se a necessidade de se evitar a prática de infrações penais, ou, mais precisamente, de se impedir a reiteração criminosa. Pacífica, nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
O Supremo Tribunal Federal já assentou o entendimento de que é legítima a tutela cautelar que tenha por fim resguardar a ordem pública, quando evidenciada a necessidade de se interromper ou diminuir a atuação de integrantes de organização criminosa.
Resta adentrar na zona intermediária ou de incerteza, vale dizer, no ‘halo do conceito’ de ordem pública.
Registre-se, preliminarmente, que o conceito de ordem pública não pode se prestar a qualquer fim. Se tudo couber no conceito de ordem pública, ele nada filtrará e não servirá como critério, razão por que deve necessariamente ser residual.
(…)
Ao invés de rejeitar o conceito de ordem pública, a pretexto de sua indeterminação ou de suas razões de ordem material, ou de persistir, em vão, na busca de um consenso para delimitá-lo, Maurício Zanoide de Moraes propõe que ele seja determinado caso a caso, desde que atendidos, no mínimo, três requisitos cumulativos: i) pena abstratamente cominada para o crime imputado; ii) circunstâncias do crime e modo de execução (v.g., homicídio por esquartejamento ou mediante tortura, tráfico de quantidades superlativas de droga, etc.); e iii) relação temporal de proximidade entre o conhecimento da autoria do ato imputado e o momento da decretação da prisão cautelar. Trata-se de parâmetros externos ao conceito de ordem pública e que operam como limites à sua indevida expansão, evitando-se, desse modo, ‘ingressar em seu conteúdo (que deve ter espaço interpretativo suficiente para ser atualizado no tempo e conforme as condições concretas), sem que com isso fique isento de margens restritivas que sejam simultaneamente proporcionais e constitucionais’.
A reforma do Código de Processo Penal, encetada pela Lei nº 12.403/11, acabou por encampar aquela proposta quanto ao requisito da pena cominada ao crime, para somente admitir a prisão preventiva originária nos crimes dolosos e quando a pena máxima exceder a quatro anos (art. 313, I), salvo se o agente for reincidente em crime doloso (art. 313, II).
A proximidade temporal entre o conhecimento do fato criminoso e sua autoria e a decretação da prisão provisória encontra paralelo com a prisão em flagrante, que sugere atualidade (‘o que está a acontecer’) e evidência (‘o que é claro, manifesto’).
Se a prisão por ‘ordem pública’ é ditada por razões materiais, quanto mais tempo se passar entre a data do fato (ou a data do conhecimento da autoria, se distinta) e a decretação da prisão, mais desnecessária ela se mostrará. Em consequência, não se pode admitir que a prisão preventiva para garantia da ordem pública seja decretada muito tempo após o fato ou o conhecimento da autoria, salvo a superveniência de fatos novos a ele relacionados.
Quanto às circunstâncias do crime e à sua particular forma de execução, Antônio Magalhães Gomes Filho sustenta que os elementos indicados no art. 282, II, do Código de Processo Penal (gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado), isolada ou cumulativamente, não constituem fundamentos que, por si sós, autorizem a imposição de medidas cautelares. A seu ver, esses elementos ‘somente entram em jogo depois de verificada a admissibilidade da medida e de sua necessidade para assegurar uma (ou mais) das finalidades enumeradas no inciso antecedente’, quais sejam, a necessidade para a aplicação da lei penal, para a investigação ou instrução criminal e para evitar a prática de infrações penais.
Pensamos, todavia, que os três elementos indicados no art. 282, II, do Código de Processo Penal efetivamente se interrelacionam para autorizar a formação do convencimento judicial a respeito da presença ou não do requisito ‘garantia da ordem pública’. A gravidade concreta do crime, revelada por suas circunstâncias e particular forma de execução, demonstra, concretamente, a periculosidade do agente, e permite um prognóstico de reiteração criminosa assentado em dados fáticos, e não em suposições.
Corroborando essa assertiva, as duas Turmas do Supremo Tribunal Federal admitem a decretação de prisão preventiva em razão da gravidade concreta do crime, para garantia da ordem pública, quando o comportamento do agente revelar, concretamente, a sua periculosidade, evidenciada pelo modus operandi da infração. De todo modo, será abusiva a decretação de qualquer medida cautelar lastreada na mera gravidade em abstrato do crime, por contrariar a presunção de inocência como norma de tratamento” (Prisão e medidas cautelares diversas: a individualização da medida cautelar no processo penal. São Paulo: Quartier Latin, 2017. p. 455-461).
Assentadas essas premissas, o fato, isoladamente considerado, de não haver sido localizado o produto do crime não constitui fundamento idôneo para a decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública, haja vista que se relaciona ao juízo de reprovabilidade da conduta, próprio do mérito da ação penal.
Assim votei quando do julgamento, em 12/4/18, pelo Tribunal Pleno, do HC nº 143.333/SP, Relator o Ministro Edson Fachin.
O mesmo se diga quanto ao alegado “risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira”, por se tratar de mera afirmação de estilo, hiperbólica e sem base empírica idônea.
A prisão preventiva não pode ser utilizada como instrumento para compelir o imputado a restituir valores ilicitamente auferidos ou a reparar o dano, o que deve ser objeto de outras medidas cautelares de natureza real, como o sequestro ou arresto de bens e valores que constituam produto do crime ou proveito auferido com sua prática.
A prisão preventiva para a garantia da ordem pública seria cabível, em tese, caso houvesse demonstração de que o reclamante estaria transferindo recursos para o exterior, conduta que implicaria risco concreto da prática de novos crimes de lavagem de ativos. Disso, todavia, não há notícia nos autos.
Também não foram apontados elementos concretos de que o reclamante, em liberdade, continuará a delinquir.
Nem se invoque a gravidade em abstrato dos crimes imputados ao reclamante e a necessidade de se acautelar a credibilidade da Justiça.
Como destacado no julgamento do HC nº 127.186/PR, Segunda
Turma, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 3/8/15,
“(...) a jurisprudência desta Suprema Corte, em reiterados pronunciamentos, tem afirmado que, por mais graves e reprováveis que sejam as condutas supostamente perpetradas, isso não justifica, por si só, a decretação da prisão cautelar (HC 94468, Relator (a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, DJe de 03-04-2009; RHC 123871, Relator (a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe de 05-03-2015; HC 121006, Relator (a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 21-10-2014; HC 121286, Relator (a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 30-05-2014; HC 113945, Relator (a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, DJe de 12-11-2013; HC 115613, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe de 13-08-2014). De igual modo, a jurisprudência do Tribunal tem orientação segura de que, em princípio, não se pode legitimar a decretação da prisão preventiva unicamente com o argumento da credibilidade das instituições públicas, “nem a repercussão nacional de certo episódio, nem o sentimento de indignação da sociedade” (HC 101537, Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, DJe de 14-11-2011). No mesmo sentido: HC 95358, Relator (a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 06-08-2010; HC 84662, Relator (a): Min. EROS GRAU, Primeira Turma, DJe de 22-10-2004). Não se nega que a sociedade tem justificadas e sobradas razões para se indignar com notícias de cometimento de crimes como os aqui indicados e de esperar uma adequada resposta do Estado, no sentido de identificar e punir os responsáveis. Todavia, a sociedade saberá também compreender que a credibilidade das instituições, especialmente do Poder Judiciário, somente se fortalecerá na exata medida em que for capaz de manter o regime de estrito cumprimento da lei, seja na apuração e no julgamento desses graves delitos, seja na preservação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, do direito a ampla defesa e do devido processo legal, no âmbito dos quais se insere também o da vedação de prisões provisórias fora dos estritos casos autorizados pelo legislador” (grifei).
A decisão de primeiro grau invocou ainda a existência de risco à aplicação da lei penal, pelo fato de 7 (sete) milhões de reais não terem sido localizados.
Ocorre que a necessidade da prisão preventiva para a aplicação da lei penal visa tutelar, essencialmente, o perigo de fuga do imputado, que, com seu comportamento, frustraria a provável execução da pena.
Ora, a não localização do produto do crime não guarda correlação lógica com o perigo de fuga do imputado.
Aliás, nem sequer basta a mera possibilidade de fuga, pois deve haver indícios de que o agente, concretamente, vá fazer uso dessa possibilidade, sob pena de abrir-se margem para a prisão de qualquer imputado.
No movediço campo das possibilidades, tanto cabe conjecturar que o agente vá fugir quanto que vá permanecer, o que demonstra sua fragilidade.
Por fim, a prisão preventiva amparou-se também na existência de risco à instrução criminal, em razão da “condição política” do reclamante e de “indícios da relação espúria com GUILHERME GONÇALVES e o referido FUNDO CONSIST”.
Houve ainda menção fluida, no decreto de prisão, a um suposto “intuito de dissimulação que certamente não desaparece pelo fato de PAULO BERNARDO ser um ex-ministro”, invocando-se ainda o “risco concreto de novas manipulações nas provas, tanto documentais como testemunhais”.
Ora, a necessidade da prisão para a garantia da investigação ou da instrução criminal visa resguardar os meios do processo, evitando-se a ocultação, a alteração ou a destruição das fontes de prova.
Seu objetivo é fazer frente a uma situação de perigo para a aquisição ou a genuinidade da prova, de modo a permitir que o processo seja concluído segundo critérios de regular funcionalidade e alcance um resultado útil.
Assim, a decisão que impõe a medida cautelar mais gravosa por esse fundamento deve indicar os elementos fáticos que demonstrem, concretamente, em que consiste o perigo para o regular desenvolvimento da investigação ou da instrução e sua vinculação a um comportamento do imputado, uma vez que não pode se basear em mera conjectura ou suspeita.
Na espécie, a decisão do juízo de primeiro grau se lastreia, de modo frágil, na mera conjectura de que o reclamante, em razão de sua condição de ex-ministro e de sua ligação com outros investigados e com a empresa envolvida nas supostas fraudes, poderia interferir na produção da prova, mas não indica um único elemento fático concreto que pudesse amparar essa ilação.
E, uma vez mais, a simples conjectura não constitui fundamento idôneo para a prisão preventiva.
Como já tive oportunidade de assentar no voto que proferi no HC nº 122.081/SP, Primeira Turma,
“[o] princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF), como norma de tratamento, significa que, diante do estado de inocência que lhe é assegurado, o imputado, no curso da persecução penal, não pode ser tratado como culpado nem se a esse equiparado.
Em sua mais relevante projeção como norma de tratamento, a presunção de inocência implica a vedação de medidas cautelares pessoais automáticas ou obrigatórias, isto é, que decorram, por si sós, da existência de uma imputação e, por essa razão, importem em verdadeira antecipação de pena.
A presunção de inocência, aqui, imbrica-se com outros direitos individuais, uma vez que a prisão provisória derivada meramente da imputação se desveste de sua indeclinável natureza cautelar, perde seu caráter de excepcionalidade (art. 5º, LXVI, CF), traduz punição antecipada - violando o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF)- e resulta no tratamento do imputado como culpado.
A prisão preventiva exige, além do alto grau de probabilidade da materialidade e da autoria (fumus commissi delicti), a indicação concreta da situação de perigo gerada pelo estado de liberdade do imputado (periculum libertatis) e a efetiva demonstração de que essa situação de risco somente poderia ser evitada com a máxima compressão da liberdade do imputado.
Em outras palavras, para a prisão preventiva, é mister a indicação dos pressupostos fáticos que autorizam a conclusão de que o imputado, em liberdade, criará riscos para os meios ou o resultado do processo, sob pena de faltar a ela justificação constitucional.
Na espécie, a prisão preventiva foi decretada exclusivamente com base na mera gravidade da infração e na suposição de que o paciente poderia praticar “atos tendentes ao impedimento da apuração da verdade real e oitiva judicial pela vítima”, bem como se furtar à futura aplicação da lei penal, com emprego de fórmulas de estilo hipotéticas válidas para todos os casos e para qualquer imputado, sem base em elementos fáticos concretos.
Ocorre que simples possibilidades, meras suspeitas, ilações, suposições ou conjecturas não autorizam a imposição da prisão cautelar.
Assim como o réu poderia fugir ou coagir a vítima e testemunhas, ele também poderia não fazer nada disso.
A presunção, com base naquela conjectura, seria de culpabilidade, e não de inocência”.
Digno de registro, ainda, excerto do voto condutor do HC nº 105.556/SP, Segunda Turma, Relator o Ministro Celso de Mello, DJe de 30/8/13, a respeito da impossibilidade de se utilizar a prisão preventiva como instrumento de antecipação de pena:
“Impõe-se advertir, no entanto, que a prisão cautelar (’carcer ad custodiam’) - que não se confunde com a prisão penal (“carcer ad poenam”) - não objetiva infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação. Não traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade a que se destina, qualquer ideia de sanção. Constitui, ao contrário, instrumento destinado a atuar “em benefício da atividade desenvolvida no processo penal” (BASILEU GARCIA, ‘Comentários ao Código de Processo Penal’, vol. III/7, item n. 1, 1945, Forense), tal como esta Suprema Corte tem proclamado:
‘A PRISÃO PREVENTIVA - ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO TEM POR OBJETIVO INFLIGIR PUNIÇÃO ANTECIPADA AO INDICIADO OU AO RÉU.
- A prisão preventiva não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia.
A prisão preventiva - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal.’
(RTJ 180/262-264, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Daí a clara advertência do Supremo Tribunal Federal, que tem sido reiterada em diversos julgados, no sentido de que se revela absolutamente inconstitucional a utilização, com fins punitivos, da prisão cautelar, pois esta não se destina a punir o indiciado ou o réu, sob pena de manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, com a consequente (e inadmissível) prevalência da ideia – tão cara aos regimes autocráticos – de supressão da liberdade individual em um contexto de julgamento sem defesa e de condenação sem processo (HC 93.883/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Isso significa, portanto, que o instituto da prisão cautelar - considerada a função exclusivamente processual que lhe é inerente - não pode ser utilizado com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva do Estado, pois, se assim fosse lícito entender, subverter-se-ia a finalidade da prisão preventiva, daí resultando grave comprometimento ao princípio da liberdade (RTJ 202/256-258, Rel. Min. CELSO DE MELLO) ” (grifos do autor).
Em suma, descabe a utilização da prisão preventiva como antecipação de uma pena que não se sabe se virá a ser imposta.
Aliás, nem mesmo no curso da AP nº 470, vulgarmente conhecida como “mensalão”, conduzida com exação pelo então Ministro Joaquim Barbosa, houve a decretação de prisões provisórias, e todos os réus ao final condenados estão cumprindo ou já cumpriram as penas fixadas.
Mais não é preciso acrescentar para se concluir que a decisão que decretou a prisão preventiva do ora reclamante contrasta frontalmente com o entendimento consolidado pela Suprema Corte a respeito dos requisitos da prisão cautelar, e, portanto, não pode subsistir.
Além do mais, é de se ter presente na espécie que, embora os fatos tenham supostamente ocorrido entre 2010 e 2015, o reclamante permaneceu no comando do Ministério do Planejamento até 1º/1/11.
Logo, significativo espaço de tempo transcorreu entre a decretação da prisão e a última intercorrência ilícita apontada, não havendo nos autos notícia a respeito de comportamento delituoso posterior por parte dele entre aquela data e o distante decreto de prisão preventiva, repito, ocorrido em 3/6/16.
Anote-se que a Corte registra precedente no sentido de que, “ainda que graves, fatos antigos não autorizam a prisão preventiva, sob pena de esvaziamento da presunção de não culpabilidade (art. 5º, inciso LVII, da CF)” (HC nº 147.192/RJ, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe de 23/2/18).
É digno de nota registrar, ainda, que, na sessão passada desta Segunda Turma (19/6/18), o reclamante foi absolvido de todas as imputações a ele dirigidas nos autos da AP nº 1.003/DF, sendo pertinente destacar que tanto a Procuradoria-Geral da República quanto o eminente Relator originário, Ministro Edson Fachin, não vislumbraram, em momento algum, a necessidade de seu encarceramento. Ao fim e ao cabo, Paulo Bernardo foi absolvido por unanimidade.
Em face dessas considerações, julgo improcedente a presente reclamação. Prejudicado, por razões óbvias, o agravo regimental interposto pela Procuradoria-Geral da República contra os termos da decisão liminar.
Concedo, todavia, ordem de habeas corpus de ofício para ratificar a decisão por mim proferida anteriormente, que revogou a prisão preventiva de Paulo Bernardo Silva, nos autos do processo que tramita perante Juiz Federal da 6ª Vara Criminal de São Paulo, nos exatos termos em que proferida, a qual foi estendida a outros investigados especificados, na forma do art. 580 do CPP.
É como voto.
*Acórdão pendente de publicação.
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo.htm
Secretaria de Documentação – SDO
Coordenadoria de Jurisprudência Comparada e Divulgação de Julgados – CJCD
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