Limites e possibilidades da ação de rescisão indireta do contrato de trabalho pelo não depósito
O não pagamento de salário, por exemplo, é causa de rescisão indireta por ser descumprimento contratual, consoante entendimento consolidado há anos, pois afeta diretamente o sustento do empregado. Resta saber se a falta de depósito dos valores do FGTS também constitui descumprimento das obrigações do contrato, cuja conduta autoriza a rescisão indireta.
É indiscutível, por constar na lei (art. 483, d, da CLT[1]), que o descumprimento das obrigações contratuais pelo empregador gera para o empregado o direito de rescindir o contrato de trabalho e receber todas as verbas rescisórias como se despedido sem justa causa, “[…] justificando a brusca ruptura contratual do liame empregatício[2]”. A divergência encontra-se na elaboração do rol das obrigações que podem ensejar a culpa patronal, o que ainda não encontra consenso em doutrina e jurisprudência.
O não pagamento de salário, por exemplo, é causa de rescisão indireta por ser descumprimento contratual, consoante entendimento consolidado há anos, pois afeta diretamente o sustento do empregado. Resta saber se a falta de depósito dos valores do FGTS também constitui descumprimento das obrigações do contrato, cuja conduta autoriza a rescisão indireta.
Alguns autores entendem que o descumprimento das obrigações do empregador é apto a gerar a pretensão de despedida indireta. Todavia, não mencionam em suas obras expressamente a falta de depósitos do FGTS, o que deixa margem para entendimentos divergentes. Nas palavras de José Augusto Rodrigues Pinto[3]:
O sentido genérico da norma não autoriza afirmar-se que o empregado tem autorização para levar a termo o contrato pela eventual inobservância de obrigações secundárias. É, portanto, de entender-se que são as obrigações mais importantes para o trabalhador que motivaram a cogitação de tal Lei, arrolando-se entre elas a obrigação fundamental de pagar o salário, de natureza alimentar. Outras de importância quase igual, como o local da prestação, o respeito à qualificação profissional do empregado, formam entre as condições executivas do contrato que, violadas, abrem caminho para sua ruptura com justa causa pelo trabalhador.
Já outros autores, como Orlando Gomes[4], lecionam que as obrigações legais e as contratuais diferem apenas na conceituação e nas fontes das quais derivam, devendo todas elas serem cumpridas pelas partes. Assim, o descumprimento de uma obrigação, tanto contratual como legal, daria ensejo à ruptura contratual.
Boa parte da doutrina brasileira defende o posicionamento no qual a falta de depósitos do FGTS pelo empregador, nos casos em que este está obrigado a fazê-lo, constitui falta grave, ou seja, trata-se de descumprimento de uma obrigação contratual, portanto apta a gerar a rescisão indireta. Para essa corrente doutrinária, as normas do Direito Trabalhista, ao conferirem proteção à parte hipossuficiente da relação laboral, o empregado, condenam qualquer falta do empregador que possa causar prejuízo ao trabalhador.
O FGTS constitui patrimônio econômico do trabalhador, o qual tem o direito de usufruí-lo nas situações em que necessita, as quais foram disciplinadas pelo legislador[5]. Assim, se a conduta omissiva do empregador – não realizar o depósito do FGTS – acaba por infringir obrigação legal imposta a este e ainda lesar o patrimônio do trabalhador, por certo tem que ser considerada falta grave.
Ademais, as obrigações advindas do ordenamento jurídico têm que ser cumpridas pelo empregador, ainda que não transcritas no instrumento contratual. São normas de ordem pública e sua inobservância gera consequências às partes envolvidas. Como leciona Renato Saraiva[6], o descumprimento das sentenças normativas, acordos e convenções coletivas também caracteriza o ato culposo que gera a falta grave patronal elencada no art. 483 da CLT[7]. Maurício Godinho Delgado[8] enfatiza que “O culposo e grave descumprimento do conteúdo do contrato, qualquer que seja a origem da estipulação, configura, sem dúvida, a falta prevista na alínea ‘d’ do art. 483 da Consolidação Trabalhista”. Essa também é a motivação de Francisco Ferreira Jorge e Jouberto de Quadros[9].
Complementando a doutrina dos autores acima, Francisco Antônio de Oliveira[10] acrescenta que o legislador, ao dispor, no art. 483, d, da CLT[11], sobre as obrigações contratuais não menciona as normas legais porquanto “[…] seria mencionar o óbvio”, visto que as normas contratuais apenas complementam as legais, e as duas fazem parte do sentido de obrigações contratuais de que fala o artigo mencionado. Segundo ele[12], isso é reflexo da relativização do princípio pacta sunt servanda no Direito Trabalhista, em que a vontade das partes é balizada pelos princípios e normas ditados pelo Estado.
Comunga do entendimento ora abordado o ilustre autor Valentin Carrion[13], o qual defende que o FGTS é a única garantia frente à instabilidade na qual se encontra o mercado de trabalho, pois não mais existe estabilidade prevista para o trabalhador, a não ser as de caráter temporário.
José Alberto Couto Maciel[14] defende ser o depósito do FGTS, juntamente com o recolhimento das contribuições previdenciárias, uma das obrigações mais importantes que provém do contrato de trabalho. Lembrando-se da polêmica em torno do assunto, Alice Monteiro de Barros[15] também entende que o não depósito dos valores do FGTS é motivo para a rescisão indireta. A autora fundamenta seu posicionamento no descumprimento de obrigação contratual e vai mais além, trazendo as hipóteses de movimentação da conta (utilização dos valores) pelo empregado a qualquer momento da vigência do contrato de trabalho como, por exemplo, se comprar imóvel pelo Sistema Financeiro de Habitação[16] ou for acometido por neoplasia maligna[17].
Posição doutrinária contrária
A corrente doutrinária contrária à rescisão indireta do contrato de trabalho pelo não depósito do FGTS utiliza-se de argumentos diferentes, contrapondo-se ao entendimento da corrente favorável. O autor mais conhecido, e um dos poucos que adotam esse posicionamento, é o ilustre escritor Sérgio Pinto Martins[18].
Esse autor defende a interpretação restritiva dos artigos constantes na CLT. Inclusive, faz menção ao disposto no art. 468 da CLT[19], o qual, ao trazer a palavra contrato (referindo-se às alterações contratuais) quer fazer referência apenas ao contrato, ou seja, ao acordo de vontades entre as partes, e não às demais normas estabelecidas pelo Direito do Trabalho como um todo. Assim dispõe[20]:
A não concessão de férias, o não pagamento do 13º salário representam obrigações legais e não contratuais. As obrigações legais do empregador para com o empregado são decorrentes da existência do contrato de trabalho, mas não são exatamente cláusulas do contrato de trabalho.
Menciona a alínea d do artigo 483 da CLT o descumprimento das obrigações contratuais, que estão, portanto, previstas no contrato, isto é, decorrem do ajuste de vontade entre as partes e não da lei ou norma coletiva.
Aduz ainda que o descumprimento das obrigações decorrentes de lei só poderá ser causa de rescisão indireta se a regra estiver contida em cláusula do contrato de trabalho[21]. Do contrário, o descumprimento pelo empregador de obrigações que não constam no instrumento contratual, não gera nenhum direito ao empregado e nenhuma sanção ao empregador.
Vólia Bonfim Cassar[22] comunga da tese acima explanada. Em seus motivos, alega que a falta cometida pelo empregador tem que ser muito grave a ponto de tornar a relação empregatícia insuportável. Na sua visão, não é o que acontece na falta de depósitos do FGTS, pois o empregado só pode utilizar os valores depositados quando o contrato de trabalho chega ao seu fim. Nas suas palavras[23]:
O não pagamento do FGTS durante o contrato de trabalho, por exemplo, é uma falta praticada pelo empregador. Entretanto, como o empregado, via de regra, só movimenta a conta do FGTS quando da extinção do contrato de trabalho, a falta não tem a necessária gravidade nem torna insuportável a continuidade da relação de emprego.
Por fim, a autora[24] elucida que mesmo que a falta não seja grave – como a falta de depósitos do FGTS – a sua reiteração ou cometimento juntamente com outras faltas leves pode tornar a relação de emprego de difícil continuidade. Nessa hipótese, as faltas, conjuntamente, configurariam causa apta a ensejar a rescisão indireta.
Referências
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 8. Ed. São Paulo: LTr, 2012.
BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 [CLT]. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em:. Acesso em: 26 mar. 2013.
BRASIL. Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990. Dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, e dá outras providências. Disponível em:. Acesso em: 26 mar. 2013.
CARRION, Valentin; CARRION, Eduardo Kroeff Machado. Comentários à consolidação das leis do trabalho: legislação complementar, jurisprudência. 37. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CASSAR, Vólia Bonfim. Direito do trabalho. 5. Ed. Niterói: Impetus, 2011.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 11. Ed. São Paulo: LTr, 2012.
GOMES, Orlando. Curso de direito do trabalho. 18. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Curso de direito do trabalho. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2011.
MACIEL, José Alberto Couto. Rescisão indireta do contrato de trabalho – atrasos nos pagamentos do FGTS e INSS. Justiça do Trabalho, Porto Alegre, n. 264, p. 8, dez. 2005.
MARTINS, Sérgio Pinto. Manual da justa causa. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2010.
PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de direito individual do trabalho. 4. Ed. São Paulo: LTr, 2000.
SARAIVA, Renato. Direito do trabalho: versão universitária. 5. Ed. São Paulo: Método, 2012.
[1] BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 [CLT]. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em:. Acesso em: 26 mar. 2013.
[2] SARAIVA, Renato. Direito do trabalho: versão universitária. 5. Ed. São Paulo: Método, 2012. P. 339.
[3] PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de direito individual do trabalho. 4. Ed. São Paulo: LTr, 2000. P. 477.
[4] GOMES, Orlando. Curso de direito do trabalho. 18. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 200.
[5] Art. 20. BRASIL. Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990. Dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, e dá outras providências. Disponível em:. Acesso em: 26 mar. 2013.
[6] SARAIVA, Renato. Direito do trabalho: versão universitária. 5. Ed. São Paulo: Método, 2012. P. 341.
[7] BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 [CLT]. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em:. Acesso em: 27 mar. 2013
[8] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 11. Ed. São Paulo: LTr, 2012. P. 1137
[9] JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Curso de direito do trabalho.2. Ed. São Paulo: Atlas, 2011. P. 310.
[10] OLIVEIRA, Francisco Antonio de. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2011. P. 787.
[11] BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 [CLT]. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em:. Acesso em: 27 mar. 2013.
[12] OLIVEIRA, Francisco Antonio de. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2011. P. 787.
[13] CARRION, Valentin; CARRION, Eduardo Kroeff Machado. Comentários à consolidação das leis do trabalho: legislação complementar, jurisprudência. 37. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 387. (grifo do autor).
[14] MACIEL, José Alberto Couto. Rescisão indireta do contrato de trabalho – atrasos nos pagamentos do FGTS e INSS. Justiça do Trabalho, Porto Alegre, n. 264, p. 8, dez. 2005.
[15] BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 8. Ed. São Paulo: LTr, 2012. P. 724.
[16] Art. 20, VII. BRASIL. Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990. Dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, e dá outras providências. Disponível em:. Acesso em: 26 mar. 2013.
[17] Art. 20, XI. BRASIL. Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990. Dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, e dá outras providências. Disponível em:. Acesso em: 26 mar. 2013.
[18] MARTINS, Sérgio Pinto. Manual da justa causa. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2010. P. 218.
[19] “Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia”. BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 [CLT]. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em:. Acesso em: 27 mar. 2013.
[20] MARTINS, Sérgio Pinto. Manual da justa causa. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2010. P. 218.
[21] MARTINS, Sérgio Pinto. Manual da justa causa. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2010. P. 218.
[22] CASSAR, Vólia Bonfim. Direito do trabalho. 5. Ed. Niterói: Impetus, 2011. P. 1167.
[23] CASSAR, Vólia Bonfim. Direito do trabalho. 5. Ed. Niterói: Impetus, 2011. P. 1169.
[24] CASSAR, Vólia Bonfim. Direito do trabalho. 5. Ed. Niterói: Impetus, 2011. P. 1167.
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