Normas, regras e princípios: conceitos e distinções (parte 1)
LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br ) Professor Doutor em Direito penal pela Universidade de Madri, Mestre em Direito penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG ( www.lfg.com.br ). Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
O valor imperioso (e civilizacional) dos princípios : o direito se expressa por meio de normas jurídicas. As normas (positivadas) se exprimem por meio de regras ou princípios. Hoje já não se pode negar que os princípios ganharam seu legítimo espaço dentro do direito, mas ainda são muitas as críticas que lhe são dirigidas. Não passariam (diz um autor) de artifícios fabricados pelos juristas para esconder propósitos ideológicos, para encubrir disparatadas operações hermenêuticas etc. Não seriam (os princípios) mais que uma entidade fantástica (Prieto Sanchis) ou uma categoria que não existe (Perez Luño).
Com a devida vênia, assim não pensamos (e assim não pensa a maior parte da doutrina moderna, atualizada). Sobretudo depois do advento do neoconstitucionalismo (que ganhou força inusitada a partir dos julgamentos de Nuremberg, em 1945-1946, posto que eles enfatizaram, com toda clareza, a distinção entre a lei e o direito), já não há como negar a força normativa (cogente, imperiosa e civilizacional) dos princípios dentro do direito (ou seja: na ciência do direito).
Na atualidade constitui verdadeiro truísmo (afirmação corrente) falar em Justiça principiológica ou em direito principiológico (Rodolfo Luis Vigo). Quem se der ao trabalho de examinar os julgamentos diários das nossas cortes acaba por comprovar (facilmente) que está se tornando cada vez mais frequente a invocação de um (ou mais de um) princípio em (praticamente) todos os julgamentos. Ou seja: os princípios existem, são normas jurídicas cogentes de realidade incontestável e, como proclama a melhor doutrina, critérios que orientam as decisões.
Os princípios constituem (na verdade) um novo tópico (Prieto Sanchez) que perpassa e reinstaura algumas velhas polêmicas da teoria jurídica, tais como: os princípios fazem parte do direito? São normas jurídicas ou regras morais ou éticas ou políticas? Fazem parte do direito positivo ou do direito natural? Possuem força coercitiva ou seriam meras recomendações? Quais são as diferenças entre os princípios e as regras? Fazem parte das fontes do direito? Eles contribuem para dotar o sistema de uniformidade e coerência? Valem como diretrizes das interpretações? Constituem fundamento das regras? Contribuem para a argumentação e interpretação jurídicas? Existem princípios implícitos?
Princípios explícitos e implícitos : começando pela última indagação, cabe sublinhar que a distinção entre princípios explícitos e implícitos conta com aceitação geral na doutrina (nesse sentido: Sánchez Martínez). Os explícitos fazem parte do direito, isto é, são normas jurídicas obrigatórias (tanto quanto são as regras jurídicas) (princípio da legalidade do crime e da pena, v.g. CF, art. 5º, inc. XXXIX). Integram as fontes do direito, porque adequadamente aprovados por quem conta com legitimidade para isso. Quanto aos princípios implícitos não pode o resultado ser diferente (e nesse ponto temos que refutar a oposição de Kelsen). Eles também emanam do ordenamento jurídico vigente, possuem validade incontestável, embora exijam muito mais esforço para a concretização do seu conteúdo.
Os princípios são normas jurídicas de aplicação imediata : os princípios, diferentemente do que pensa parte da doutrina (Esser, por exemplo, com algumas particularidades), não são pré-jurídicos, meros juízos de valor, orientações morais ou políticas etc. Não estão fora do direito. Esser, no entanto, é verdade, não chegou a defender o iusnaturalismo (tal como criticou, injustamente, Kelsen). De acordo com o nosso ponto de vista, os princípios, mais que terem influência no mundo jurídico (Esser), mais que constituírem motivos para o legislador ou para o juiz no momento da criação do direito (Kelsen), mais que princípio das normas (Betti) ou mais que ideias reitoras de uma regulação (Larenz), mais que tudo isso, os princípios se revestem das qualidades das normas jurídicas, tanto quanto as regras. Possuem forma jurídica, não são (meras) orientações políticas, mandamentos morais ou preceitos éticos. Fazem parte das fontes do direito (e coincidem, com frequencia, com preceitos éticos ou morais, daí o valor deles em termos civilizacionais).
No que diz respeito à forma, portanto, já não vale a pena prolongar a discussão: nesse aspecto os princípios se parecem (se identificam) com as regras. A diferença (entre eles) está no conteúdo: os princípios (embora contemplados explícita ou implicitamente no ordenamento jurídico) são mais vagos, mais abertos; as regras são mais precisas (de um modo geral). De qualquer maneira, a descoberta (ou revelação) do verdadeiro sentido (significado) de um princípio ou de uma regra depende da intervenção do legislador, do intérprete e/ou do juiz. O programa normativo efetivo de um ou de outro é dependente das atividades citadas. Os princípios apresentam uma relação de dependência muito forte frente ao legislador, intérprete e juiz. É doutrina corrente a de que os princípios são mais imprecisos, mais incertos (ou seja: mais amplos, mais abertos), o que exige, sobretudo do intérprete e do juiz, uma tarefa (muitas vezes hercúlea) mais profunda para a sua concretização. Os chamados agentes transformadores (legislador, intérpretes e juiz) devem se encarregar da forma (jurídica) e do conteúdo (significado) de cada um dos princípios.
No que diz respeito às regras normalmente isso acontece com certa facilidade. Já quanto aos princípios em regra eles dependem de delimitação, de concretização. Isso, no entanto, diferentemente do pensava parte da doutrina (Kelsen, v.g.), não pode reduzir o valor ou a importância dos princípios, que não são (repita-se) meros critérios valorativos ou diretivos extra-jurídicos, que estariam fora do direito (Betti). Ao contrário, pertencem ao direito (Bobbio), embora exijam (para serem conhecidos) sempre uma atividade não puramente lógica, sim, axiológica (valorativa, ponderativa).
Os princípios, em suma, assumem a roupagem de diretrizes gerais de um ordenamento jurídico (ou de parte dele). Seu espectro de incidência é muito mais amplo que o das regras. Entre eles pode haver colisão, não conflito. Quando colidem, não se excluem. Como mandados de otimização que são (Alexy), sempre podem ter incidência em casos concretos (às vezes, concomitantemente dois ou mais deles). De qualquer modo, parece certo que cada um deles possui sua força, seu peso e sua relevância. Há hierarquia axiológica entre eles, que deve ser apurada e valorada concretamente. Os princípios da privacidade e da intimidade, da preservação da integridade física etc. são relevantes, mas em algumas situações probatórias eles sucumbem diante do princípio da segurança ou da persecução penal (possibilitando ao juiz determinar a realização de uma prova, mesmo contra a vontade do réu. Por exemplo, quando o agente está portando droga no estômago).
Conflito versus colisão : as regras (normalmente) disciplinam uma situação determinada; quando ocorre essa situação, a norma tem incidência; quando não ocorre, não tem incidência. Para as regras vale a lógica do tudo ou nada (Dworkin). Quando duas regras colidem, fala-se em conflito; ao caso concreto uma só será aplicável (uma afasta a aplicação da outra). O conflito entre regras deve ser resolvido pelos meios clássicos de interpretação: a lei especial derroga a lei geral (princípio da especialidade), a lei posterior afasta a anterior (princípio da posterioridade), a norma superior prepondera sobre a norma inferior (princípio da hierarquia). Muitas vezes, é um princípio que entra em ação para resolver o conflito entre duas regras. Por exemplo: o art. 2º, 2º da Lei 9.613/1998 (lei de lavagem de capitais), que dispensa a aplicação do art. 366 do CPP (que manda suspender o processo quando o réu é citado por edital), conflita com o art. 4º, 3º, da mesma lei, que manda aplicar o referido art. 366. Esse conflito se resolve (em favor do art. 4º, 3º) pela aplicação do princípio da ampla defesa (aplica-se a norma mais favorável à defesa).
Caso concreto versus multiplicidade de situações : a diferença marcante entre as regras e os princípios, portanto, reside no seguinte: a regra cuida (normalmente) de casos concretos. Exemplo: o inquérito policial destina-se a apurar a infração penal e sua autoria CPP, art. 4º. Os princípios (em regra) norteiam uma multiplicidade de situações. O princípio da presunção de inocência, por exemplo, cuida da forma de tratamento do acusado bem como de uma série de regras probatórias (o ônus da prova cabe a quem faz a alegação, a responsabilidade do acusado só pode ser comprovada constitucional, legal e judicialmente etc.).
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muito esclarecedor! continuar lendo